sábado, 31 de maio de 2014

Jesus, à luz do Sol…


A entrevista de Jesus ao jornal Sol tem um interesse particular: foi preparada há muito tempo, dada há mais de uma semana, e, portanto, Jesus teve todo o tempo para a ver e rever; aquilo que saiu foi exactamente o que Jesus quis que saísse, o que é dito corresponde àquilo que Jesus quis tornar público.

Esta entrevista, traduz, portanto, a imagem que Jesus quer dar de si próprio, e é enquanto tal que deve ser entendida.

Não quer isto dizer que as respostas de Jesus foram calculistas ou sequer que foram todas calculadas. De forma nenhuma, ninguém consegue controlar totalmente estas situações sem cair na artificialidade, sem perder autenticidade. E Jesus quis ser autêntico. O que não obsta a que, naturalmente, o seu discurso possa ter apreciações e interpretações diferentes daquelas que, com maior ou menor grau de intencionalidade, Jesus nele colocou ou consideraria possíveis, o que acontece, aliás e inevitavelmente, com todas as formas de expressão.

Dito isto, parece-me haver várias características de si próprio que Jesus quis evidenciar e fazer passar:

i) Um Jesus, self-made man, que construiu o seu caminho, desde muito cedo, com autonomia, e até mesmo com solidão, não beneficiando de ajudas, contando, sobretudo, e muitas vezes apenas consigo próprio.

ii) Um Jesus com raízes populares, que começou como operário num bairro suburbano, com uma cultura de bairro própria, nomeadamente ao nível da linguagem (o que alguns confundem com dar pontapés na gramática).

iii) Um Jesus destemido, truculento, sem receio de nada, capaz de se meter ao barulho e envolver em zaragatas, se considerar necessário e, por vezes, mesmo que não seja necessário, que não deixa passar ‘provocações’ sem a devida resposta. Jesus valoriza esta maneira de ser. Um dia, ao defender o treinador Fernando Peres “Meti-me no meio daquela confusão, à cabeçada e ao pontapé, e limpei aquilo tudo. Este é o meu ADN”. ADN que já passou para os filhos “São destemidos, praticam jiu jitsu e batem em qualquer um”. Ficou a gostar do Tim Sherwood, porque constatou que é um homem destemido que não teve medo dele, Jesus (“Se fosse preciso dar-me uma cabeçada, ali, dava”).

iv) Relacionado com o aspecto anterior, um Jesus convicto das suas prerrogativas, inflexível na sua autoridade, sem medo de azias de jogadores. O Líder é ele e ponto final, quem não aceita as suas opções não tem futuro na equipa. Dá muita margem ao capitão desde que este não ultrapasse os limites. Jesus manda em tudo o que diz respeito ao seu sector de trabalho e só responde perante os presidentes. Mas, mesmo estes têm limites traçados, não podem entrar no balneário para falar com os jogadores sobre questões que têm que ver com o jogo, nem interferir na área técnica.

v) Um treinador muito exigente “Os jogadores do Benfica [quando Jesus chegou] não estavam habituados àquilo que acho importante: exigência, responsabilidade e profissionalismo. Hoje já não tenho esse problema, eles já sabem com o que contam”.

vi) Um Jesus profundamente convicto das suas capacidades, que se considera o melhor do mundo na área que escolheu como campo de trabalho, nível que alcançou, com base na sua experiência de vida e do futebol, com muito esforço, paixão e, mais que tudo, com criatividade. Jesus, enquanto treinador, é um criador, tal como Paula Rego enquanto pintora. Criação que conjuga arte, ciência e técnica. Quem copia não vai longe, só quem cria tem êxito. Tem para si que é o melhor, mas está sempre a aprender e a inovar.

vii) Um Jesus com uma ética de solidariedade e gratidão, amigo do seu amigo, agradecido e leal, que nunca, ninguém nem nenhuma circunstância, impedirão de reconhecer e cumprimentar. Por exemplo, enquanto estiver no Benfica cumprimentará sempre Pinto da Costa, onde quer que seja, assim como se um dia treinar o Porto cumprimentará sempre Lui Filipe Vieira.

Naturalmente, resultam da entrevista outras características, menos intencionalmente expressas, mas que são igualmente importantes para compreender o homem e o treinador.

i) Um Jesus individualista, ‘solitário’. Embora possa haver algum egocentrismo (como em toda a gente) não me parece que seja o elemento determinante. É um individualismo que está profundamente enraizado na sua personalidade. Verdadeiramente, Jesus apenas consegue confiar em si próprio, sentir-se em paz apenas quando está consigo mesmo. Neste sentido, Jesus é um solitário, mesmo quando está rodeado de gente. “Gosto de estar no meu canto, sozinho”, diz. “Quando não ganho, os meus filhos e a minha mulher sabem que não se podem chegar ao pé de mim. Fecho-me. Enquanto não souber porque é que a equipa falhou, não quero ninguém ao pé de mim. Não durmo nessa noite”. É claro que Jesus tem amigos, que preza, embora sejam poucos, como diz. Partilha com eles a “alegria do dia-a-dia”, mas parece não partilhar com ninguém os momentos difíceis, a dor.

ii) Um Jesus muito emocional. Já se sabia, basta vê-lo ao longo da linha lateral durante os jogos (não deixa de ser espantosa a forma como, num turbilhão de emoções, Jesus consegue ter, simultaneamente, a racionalidade suficiente para ler, e bem, o jogo). Surgem, porém, na entrevista novas dimensões da sua emotividade. Desde logo o facto de ter vestido de preto durante anos, em luto pela morte da mãe, e não como mania ou moda, como muitos pensavam. Depois, a forma como o tocam gestos e atitudes de afecto e apoio sentido. Jesus diz que ficou no Benfica por causa do Presidente e porque dois jovens adeptos lhe pediram para ficar, um colocando um vídeo no YouTube, outro, pessoalmente, oferecendo-lhe o emblema de 25 anos de sócio (tantos quantos os anos de vida).

iii) Um Jesus que gosta de jogar. Já jogou no casino, mas deixou de frequentar esses lugares desde que começou a ser um treinador conhecido. Mas os jogos, diz, também foram importantes para a sua vida de treinador, porque o “obrigaram a não ter medo de arriscar”.

iv) Um Jesus com dificuldade em reconhecer, publicamente (provavelmente não para si próprio), que comete erros.

v) Um Jesus que ainda não consegue lidar bem com as suas lacunas ao nível da formação escolar e educativa. Que sente que essas lacunas contribuíram para ter chegado ao topo mais tarde do que desejaria. Procura justificar-se dizendo que não é o Eça de Queirós, nem estudou para ser professor de português. Ou com a cultura de bairro, referindo que diz ‘gande’ em vez de grande e ‘tamém’ em vez de também, não porque sejam ‘pontapés na gramática’, mas como reflexo daquilo que refere ser a “linguística de bairro”, destapando, na mesma frase, as suas lacunas, ao não distinguir entre ‘linguagem’, forma de expressão e comunicação, e ‘linguística’, ciência que estuda a linguagem. Jesus é um indivíduo efectivamente inteligente. Não deve ter problemas em assumir as suas lacunas (só os ‘maus’ podem levar-lhe a mal essas lacunas) e tentar corrigi-las. Aliás, mais adiante, Jesus refere que, neste momento está a ler dois livros: o Inglês para Totós, e o Pontapés na Gramática, mostrando que tem consciência daquilo em deve melhorar e está a tentar fazê-lo (é isso que importa, Mister!).

Estes parecem-me ser os aspectos principais, relativamente ao ‘quadro humano’ que a entrevista de Jesus permite traçar. Um homem inteligente, determinado, emocional, com virtudes e defeitos, com atributos e lacunas, de raízes populares, que em grande medida se fez a si próprio, o que se reflecte nas suas forças, mas também nas suas fraquezas e inseguranças.

Ao nível do futebol, não restam dúvidas sobre a sua enorme capacidade de trabalho, de desenvolvimento do conhecimento sobre o jogo, capacidade criativa e inovadora (interessante a afirmação de que o futuro do futebol passa pela capacidade das equipas mudarem o sistema de jogo, de forma flexível, ao longo da partida, como se faz no andebol e no basquetebol).

É claro que a sua personalidade tem, necessariamente, influências positivas e menos positivas, na sua prestação como treinador.

Jesus é, efectivamente, um líder. Um líder que se impõe pelo grande conhecimento do jogo e dos jogadores (o que estes reconhecem), pela sua firmeza e, se necessário, pela agressividade. Mas Jesus não é um líder ‘natural’, ‘carismático’, que se impõe por si mesmo, para além das suas capacidades (mas este tipo de líderes é muito raro). Os jogadores seguem-no convictamente, mas fica a dúvida se alguma vez ‘darão a vida’ por ele.

A grande confiança que tem nas suas capacidades dificulta-lhe, por vezes, o saber distinguir a linha que separa a convicção da teimosia.

A sua emotividade, as raízes populares, a sua raça, querer e ambição encaixam bem no Benfica, e encaixam bem com o Presidente Vieira. Entre as suas características, o individualismo é talvez a mais dissonante com a cultura de um clube que tem por lema ‘E pluribus unum’, onde ninguém é maior do que o clube, onde o brilho individual, por maior que seja (tu és o nosso rei, Eusébio!), se enquadra na expressão colectiva.

Jesus fez, indubitavelmente, crescer o Benfica e recolocá-lo em patamares elevados. Mas Jesus também cresceu com o Benfica e aprendeu mais nestes anos do que no resto da carreia como treinador.

O sucesso de Jesus não se deve apenas a ele, mas ao Presidente, à estrutura, às condições de que dispõe, à memória e aos valores do Clube, e à massa adepta que está sempre presente, no estádio, pelo país e pelo mundo.

Esta entrevista permitiu compreender um pouco do homem para além do treinador, com as suas forças e debilidades, virtudes e defeitos, em suma, com a sua ‘simples’ humanidade.

Permitiu confirmar também que Jesus é um grande treinador e que pode ainda contribuir muito para o engrandecimento do Glorioso.

Finalmente, não posso deixar de notar algumas ‘revelações’ (ou confirmações) interessantes (para todos os gostos), feitas na entrevista:

- Que é profissional de futebol e, portanto, não põe de parte a hipótese de vir a treinar Sporting ou Porto.

- Que nunca treinou o Porto “Porque há momentos em que as coisas não se juntam, só por isso”, que [ele e Pinto da Costa] “Sempre quisemos dançar os dois o tango, só que nunca nos agarrámos”.

- No final da época passada Jesus teve, de facto, quase tudo acertado para ir para o Porto, que lhe pagava “muito mais” do que ganha no Benfica (sabendo do estado miserável das contas do Porto, isto mostra a vontade ‘desesperada’ de Pinto da Costa). Não foi, porque o Presidente o convidou para ficar e os adeptos o sensibilizaram.

- Afinal, não foi apenas Luís Filipe Vieira que apoiou a continuidade de Jesus. Também teve o apoio do Domingos Soares Oliveira (esse lagarto infiltrado, no dizer de alguns), de Alcino António, Sílvio Cervan e de Rui Costa.

- Que Rui Costa acompanha de facto a equipa e é o único que entra no balneário, para além dos elementos do departamento médico.

- Que, mesmo antes da lesão de Artur, já tinha feito saber ao Oblak, e já estava estipulado, que ele ia começar a jogar.

- No contexto da transferência para o Chelsea, Matic, por influência do empresário, não queria, de facto, jogar a partida com o Porto, mas Jesus e o Presidente convenceram-no (e que bem que jogou!).

- Houve de facto problemas com o Rúben Amorim, nos primeiros tempos, porque este achava que tinha que jogar e, quando assim é, os jogadores têm problemas, porque quem manda é ele. O mesmo terá acontecido com Enzo Perez.

- Que há uma grande cumplicidade entre ele e Vieira “Para além de uma relação de trabalho, há uma amizade forte. Acredito muito nele e ele em mim. Se um dia nos separarmos por qualquer motivo, vai ser sempre com uma confiança e com um sentido de muita união. Se um dia saísse do Benfica nunca iria sair a mal”.

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